sexta-feira, 5 de abril de 2019

Dose
Walter Macedo Filho
(Conto do livro Nebulosos - Ed. 7Letras, 2012 https://www.7letras.com.br/nebulosos.html)

Responsabilidade dela
Não tenho certeza se tomei o remédio. Acredito que se eu tivesse tomado, provavelmente já teria feito algum efeito. Não tenho paciência para essas coisas. Por mim, deixaria como está. Mas estou certo de que ela vai notar. Ela vai querer saber. Ela vai conferir a quantidade. Ela sempre sabe a quantidade. Sempre sabe se está certa ou não. Sabe mais do que eu. Mas saber mais do que eu não é lá grande coisa.
E se eu tomar agora? E se eu já tiver tomado? Não dá para descuidar. Eu deveria ter prestado mais atenção. Agora já foi.
Ela que descubra. Ela que reclame mais uma vez. Que importa? Se ela faz questão de conferir, é porque eu não sou mesmo confiável. Se não dá para confiar em mim, isso passa a ser problema dela, responsabilidade dela. Ela me acostuma mal me tratando sempre assim. Como quer que eu seja diferente? Como posso ser diferente se sempre me acham incapaz para qualquer coisa? Qualquer coisa como, por exemplo, tomar um remédio na hora certa. Mas se eu fosse tão ajustado, tão ciente de tudo, nem precisaria tomar esse maldito remédio.
Com essa chuva ela vai demorar. O trânsito fica caótico.
Um nó. As pessoas não sabem dirigir na chuva. É inacreditável.
Quando eu dirigia, não tinha problema nenhum. Podia estar chovendo, caindo o céu, o que fosse, eu andava para todo lado. Nunca tive medo de chuva. Nunca tive medo de nada. Tem gente que detesta dirigir de madrugada. Eu não.
“O que foi dessa vez?”
As últimas vezes que eu fiquei sozinho foram tranquilas. Mas ela chegava logo. Ela não demorava tanto. O baralho já não me distrai como antes. De vez em quando os números se misturam e me dá uma grande aflição. Não posso contar isso para ninguém. Cada vez tenho menos coisa para contar para os outros. Tenho medo de ser julgado. Não dá mais para errar. Qualquer besteira e eles vão dizer que é por causa do remédio. Ou por causa do problema que eu tenho. Ninguém mais acredita que pode ser só um pequeno deslize, um simples engano, que pode acontecer com qualquer pessoa, todo dia. As pessoas normais também se enganam e se esquecem das coisas. As pessoas normais também acordam diferentes alguns dias e ninguém se importa. Dão risada e seguem a vida. Ninguém se afasta das pessoas que esquecem onde deixaram o carro no estacionamento do shop- ping. Tiram sarro umas das outras e continuam levando a vida normalmente. Normalmente. Eu não posso me esquecer de nada. Estou proibido de esquecer. Impedido de errar.
Eu poderia ligar para ela. Mas tenho medo. Tenho medo de que ela pergunte: “O que foi dessa vez?” Odeio quando ela pergunta isso. É uma violência. É como se eu sempre tivesse uma coisa ruim para contar para ela. Ela poderia ser mais carinhosa, mais compreensiva. Poderia se interessar pelas minhas coisas. Poderia ter mais interesse por mim. Não quero que ela cuide de
mim, quero que ela tenha interesse. É bem diferente.
Escapam palavras
Gostaria de poder contar para alguém sobre os sons que ouço vindos da rua. Eles se transformam em pequenas melodias. É bonito. Se eu soubesse tocar algum instrumento, mostraria que músicas são essas. Elas ficam só para mim. Não posso dividir com ninguém. Bem que eu gostaria.
E tem as palavras. As palavras que vêm na minha cabeça e que escapam da minha caneta. Não consigo guardar quase nada. Minha memória está piorando. Tenho medo de acordar um dia completamente esquecido de tudo.
É melhor eu tomar o remédio. Gostaria tanto de ser ela. Tenho muita vontade de estar no lugar dela. Vou tomar o remédio que ela toma. O vidro todo.

sábado, 24 de junho de 2017

Jair Ferreira dos Santos

Tenho o prazer de reproduzir esta importante entrevista concedida pelo poeta e escritor Jair Ferreira dos Santos em 21 de fevereiro de 2007

Fale um pouco sobre sua vida em C. Procópio de 1946 a 1971. Foi preciso sair de Cornélio para escrever sobre Monte Castelo?

JFS - Venho de uma família simples, classe média baixa interiorana. Meu pai era padeiro e violonista. Durante anos teve uma orquestra. Minha mãe é uma camponesa católica fervorosa que me forneceu boa parte do meu caráter. Ascensão social ali significava: mandar os filhos para escola para que tivessem uma vida menos dura. Fui bom aluno no primeiro e segundo graus. Na adolescência, seguindo o clima de contestação da época, comecei a ler muito – Freud, Marx, Sartre, Camus, Clarice Lispector, Osman Lins, depois foram os americanos, Hemingway, Fitzgerald, Mailer, mas sobretudo John Updike. Em 1970 entrei para o Banco do Brasil e no ano seguinte vim para o Rio. Quanto a Monte Castelo (C. Procópio, em dois contos do livro), realmente foi preciso distanciamento para atenuar os conflitos sociais, as fantasias revanchistas com relação ao lugar e apreciar o valor da minha história ali como o da beleza irremovível da sua paisagem. Somos uma promessa feita a uma paisagem.

A que classe social não prevista pelo marxismo clássico pertencem Boanerges, o Boina, e Tôni Labanca, personagens que vivem em Monte Castelo?

JFS  -  De fato, Boanerges, no conto “Justiça Eleitoral”, é mais um estróina que um simples proletário do setor de serviços que tem seu dia de glória, isto é, de poder, quando preside a mesa nas eleições. Seu conflito é mais com a comunidade como um todo, pela sua deformidade, do que com a classe dominante. Já Tôni Labanca, no texto que leva seu nome, é o típico arrivista, oportunista fascinado pelo glamour do cinema, algo parecido com um lumpen pequeno-burguês que simula servir à burguesia para se dar bem. Ou seja, o popular picareta travestido de puxa-saco. Esses tipos são interessantes porque são criativos, hábeis e fazem a comunidade progredir, civilizar-se. No conto, esse personagem lida com as várias formas de corrupção que floresceram no país nas últimas décadas.

Onde começa a senzala e termina a cibernética, na literatura e na vida real?

JFS  -   Em Cybersenzala, como o título indica, elas se fundem. O telemarqueting, os call-centers, os 0800 são atividades estafantes, em cubículos minúsculos, com horários rígidos e metas de produção a cumprir. Ninguém trabalha nisso mais de seis meses em média. É uma senzala cibernética. No mercado financeiro, o que pega é a tensão, a incerteza, a complexidade do setor e ali a senzala é na verdade a mentalidade dos operadores. Nossa literatura não fala dessa gente, mas eles estão aí, com seu estilo de vida, suas roupas grifadas, sua ambição, seu hedonismo, seu cinismo, sua falta de cultura. Eu quis sabe como eles viviam, o que comiam, bebiam, como falavam e daí saíu o conto que dá título ao livro. Isso é a literatura. Na vida real, estamos todos embarcados numa revolução tecnológica calcada na informação, teremos na verdade um Modo de Produção Informático no futuro, isso se a ecologia deixar, mas acho que o mundo das telas, e o que não está nas telas não está na vida, serve mais é para mascarar uma crise civilizatória, uma ausência total de valores com o fim dos deuses, da pátria, do dever, da revolução.

No conto “Fado Pauleira” há uma frase impressionante: “Todas as portas estavam fechadas, até a do suicídio”. Lembrou-me um verso de Drummond: “Chega um tempo em que a vida é uma ordem”. Você concorda com o poeta? No mundo de hoje a literatura é uma forma de resistência e sobrevivência?

JFS  -   A frase do personagem Breno Bastos e a de Drummond são convergentes, mas no conto trata-se do esgotamento das ilusões pessoais. A aceitação da velhice implicará mudanças na auto-imagem do escritor, que deverá viver e escrever com seu ego real sem pagar tributo ao seu ego ideal, conversão sempre dolorosa. O que eu quis mostrar é como a geração 70 está envelhecendo, sua dificuldade em abandonar o forever young, em lidar com as alterações na sexualidade, na vida literária, etc. Quanto ao suicidio, está dito lá que “as pessoas se matam para deixarem de morrer”, mas não era o caso de Breno Bastos. Ele havia cruzado uma linha em que o suicídio deixara de ser saída honrosa, pois até a idéia de suicídio envelhece em nós. Ele sofria mesmo era da manha de não querer “paz na desilusão” (expressão de Sérgio Sant’Anna). Hoje mais do que nunca literatura é resistência, sobretudo agora que a cultura letrada enfrenta não só a cultura visual, mas dentro das suas linhas luta também contra o entretenimento impresso. O best-seller, a auto-ajuda, o pessoal midiático que se põe a fazer romances e contos roubam espaço da literatura séria, aquela que pretende escrever livros com tal força e questionamento que as pessoas sejam modificadas pela sua leitura. Nenhum best-seller ou novela de tv afeta a vida de ninguém, mas a leitura de Kafka pode mudar profundamente a sua (mudou a minha). 

Seus contos estão repletos de referências irônicas – e sarcásticas – ao vocabulário pop. Comente a influência da linguagem pop na literatura atual.

JFS  -   Vamos chamar o pop de cultura de massa ou entretenimento cujas simplificações e estereótipos cometem dois pecados: sugerir que arte é diversão (sem instrução) e que tudo é dizível. Ora, desde Homero até Borges, arte é diversão e conhecimento, descoberta, ao mesmo tempo que esforço para reconhecer o indizível. Sem isso, o pop só faz empobrecer a problematização da realidade e a língua que empregamos, porque se apóia na linguagem cotidiana. Nos anos 80 o Jornal Nacional era dado com 850 palavras apenas. Por isso meu livro está na contramão do conto enxuto, rápido, comercial, pronto para consumo. Escrevo histórias um pouco mais saturadas de informação, com um vocabulário maior, sem ser hermético, para penetrar na complexidade do mundo atual. E aí o humor entra como arma de guerra contra a alienação, as ilusões do entretenimento em que o Bem, identificado com o consumo e a ordem social, sempre vencem. As ironias são para expor nossa existência sem fundamento.

O virtual já tomou posse do real – até mesmo em relação à morte, como em “www.joy&peacefuneraldesign.com”?

JFS   -   Há duas leis que o capitalismo ainda não revogou: a proibição do incesto e o enterro dos mortos. O resto, vale tudo, desde que pago. Mas os serviços funerários já começam a “destragicizar” a morte (o que, para ser franco, não acho de todo mau). A morte vai sendo pouco a pouco dessimbolizada, o luto hoje, por exemplo, é mínimo. O que procurei nesse conto foi mostrar, através de um site, como a morte vem sendo desdramatizada pela linguagem do entretenimento: fantasias, decoração, enxoval do morto, bandas de rock, sorteios, comidas espetacularizam a cena fúnebre, tiram a transcendência da morte usando uma linguagem melíflua, meio negócio meio publicidade. Isto pode significar que aquilo que é tentativa no virtual, com o tempo se instala no real. Veja a pedofilia como vem crescendo em função da Internet. Por aí, meu livro viaja pelo contemporâneo explorando em cinco ou seis contos uma mídia em cada um deles. O cinema em “Tôni Labanca”, a televisão em “Natália no Horizonte”, a publicidade em “Recursos Humanos”. Isto ocorre porque nosso acesso à realidade se dá quase que exclusivamente através dos meios. E não há saída para isso, a menos que limitemos a sociedade de consumo, que depende deles – ameaça que o problema ecológico vem tornando cada vez mais provável. Felizmente.

Há algo de bom na nova literatura brasileira? E quais autores precisamos tirar da estante e reler.

JFS  -   É difícil responder porque há muita gente escrevendo no país, o número de editoras aumentou e o de títulos também (embora as tiragens tenham caído), não dá para se manter atualizado. Eu acompanho alguns autores – Sérgio Sant’Anna, Marçal Aquino, Domingos Pellegrini, Rubens Figueiredo, Miguel Sanchez, Cíntia Moscovici – e costumo zapear os novos para me motivar, o que tem sido raro. Nossa literatura parece tímida face à brutal complexidade do país. É muito subjetivismo, pouca busca de novos espaços ficcionais. Não conheço um romance importante sobre os operadores da bolsa de valores ou sobre o raggae em São Luiz ou sobre o tráfico de brasileiras para a Europa. Tiro da estante com relativa frequência O Homem sem Qualidades (Musil), A Náusea (Sartre), os contos de Clarice Lispector, Memórias Póstumas de Braz Cubas (Machado), A Ilha de Arturo (Elza Morante), o livro mais bonito que já li, e Casais Trocados (John Updike), um texto brilhante.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013






Augusto Boal (1931-2009) foi um dos maiores teatrólogos contemporâneos. O título de “Embaixador do Teatro Mundial”, conferido a ele pela Unesco em 2009, consagrou uma trajetória brilhante. Seus métodos e encenações correram o mundo desde 1971, quando foi preso e exilado pela ditadura. Pudera, pois a atuação de Boal no Teatro de Arena, a partir de fins dos anos 1950, havia trazido a política para o centro dos palcos brasileiros,encenando e discutindo os problemas sociais que até hoje nosafligem.
 
Teatro do oprimido é o livro mais conhecido do autor - foi traduzido para as principais línguas do ocidente e do oriente. Nela estão os fundamentos teóricos e técnicos desenvolvidos por Boal nos anos seguintes em obras que falam às pessoas comuns e vão muito além do palco, ganhando ruas, praças, escolas, parlamentos e clínicas, na tentativa de nos libertar das opressões impostas e das que criamos dentro de nós mesmos. O volume dá início à publicação de novas edições dos principais títulos da obra do teatrólogo pela Cosac Naify. Para 2014 estão previstos Jogos para atores e não atores e Hamlet e o filho do padeiro. A coordenação editorial é de Milton Ohata.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

"Odisseia" - no TUSP, até 10 de março de 2013


Pedro Lopes, Gabriel Muglia e Natalia Kronig -  Foto: João Caldas

Em seu trabalho inaugural, o núcleo experimental Estúdio da Cena, integrado por atores formados pelo Teatro Escola Célia Helena e pela Escola Superior de Artes Célia Helena, permanece em cartaz até o dia 02 de dezembro, no Galpão do Folias, com o o espetáculo Odisseia. Inspirado no texto original de Homero, escrito há quase três mil anos, a montagem tem concepção e direção de Marco Antonio Rodrigues e dramaturgia de Samir Yazbek e Estúdio da Cena. Ambos são professores da ESCH (Escola Superior de Artes Célia Helena), responsável pela realização do projeto. 

Odisseia - Teatro da USP - Rua Maria Antônia, 294 Consolação – São Paulo, SP - Tel. (11) 3123-5233 - Sextas e sábados, 21h; domingos, 20h - Classificação indicativa: 16 anos - Ingressos: R$ 30,00 - até 10 de março de 2013  

"Odisseia" - entrevista com Samir Yazbek - I


Pedro Carrasco, Sarha Campos, Pedro Lopes, Gabriel Muglia, Rafael Faustino, Aline Basili - Foto: João Caldas
A ESCOLHA DO TEXTO
Samir Yazbek: "'Odisseia', de Homero, foi escolhida pelo diretor Marco Antonio Rodrigues como ponto de partida para a realização de um espetáculo teatral. Ele me convidou para fazer a dramaturgia da peça, com um grupo de atores formados pelo Teatro Escola Célia Helena e pela Escola Superior de Artes Célia Helena, onde lecionamos. Trata-se do Estúdio da Cena em seu primeiro trabalho profissional. A ideia era fazer um mergulho no texto de Homero, estudando-o episódio por episódio, buscando relacioná-lo com os dias de hoje. Não queríamos fazer uma “adaptação” da “Odisseia”, mas sim olhar o nosso mundo por meio da obra de Homero."

Odisseia - Teatro da USP - Rua Maria Antônia, 294 Consolação – São Paulo, SP - Tel. (11) 3123-5233 - Sextas e sábados, 21h; domingos, 20h - Classificação indicativa: 16 anos - Ingressos: R$ 30,00 - até 10 de março de 2013 

"Odisseia" - dramaturgia de Samir Yazbek - IV



Gabriel Muglia, Aline Basili, Renata Asato, Pedro Lopes, Natalia Kronig, Sarah Campos, Pedro Carrasco - Foto: João Caldas
PESQUISA
Samir Yazbek: "Ao longo dos 18 meses de ensaios, estudamos profundamente “Odisseia”. Foi nossa principal fonte de inspiração. Além disso, nos servimos de textos de autores que refletiram sobre a obra de Homero, e de romances, filmes, peças etc., que se originaram a partir da “Odisseia”. Também contou muito a observação da nossa realidade – realidade, esta, que apenas começamos a arranhar no que diz respeito à sua compreensão."

Odisseia - Teatro da USP - Rua Maria Antônia, 294 Consolação – São Paulo, SP - Tel. (11) 3123-5233 - Sextas e sábados, 21h; domingos, 20h - Classificação indicativa: 16 anos - Ingressos: R$ 30,00 - até 10 de março de 2013 

"Odisseia" - entrevista com Samir Yazbek - V


Natalia Kronig, Gabriel Muglia, Renata Asato - Foto: João Caldas
HOMERO: UMA EXPERIÊNCIA
Samir Yazbek: "A melhor e mais incontornável experiência que tivemos ao longo desse processo – excetuando a própria experiência de fazer a peça – foi a leitura da obra de Homero. Mil novas histórias estão ali contidas, à espera de tantas outras formas de percepção. Não resta dúvida de que a obra de Homero é um manancial inesgotável de estímulo para a nossa arte e para a nossa vida."

Odisseia - Teatro da USP - Rua Maria Antônia, 294 Consolação – São Paulo, SP - Tel. (11) 3123-5233 - Sextas e sábados, 21h; domingos, 20h - Classificação indicativa: 16 anos - Ingressos: R$ 30,00 - até 10 de março de 2013