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Jair Ferreira dos Santos |
Tenho o prazer de reproduzir esta importante entrevista concedida pelo poeta e escritor Jair Ferreira dos Santos em 21 de fevereiro de 2007
Fale um pouco sobre
sua vida em C. Procópio de 1946 a 1971. Foi preciso sair de Cornélio para
escrever sobre Monte Castelo?
JFS - Venho de uma família simples, classe média baixa
interiorana. Meu pai era padeiro e violonista. Durante anos teve uma orquestra.
Minha mãe é uma camponesa católica fervorosa que me forneceu boa parte do meu
caráter. Ascensão social ali significava: mandar os filhos para escola para que
tivessem uma vida menos dura. Fui bom aluno no primeiro e segundo graus. Na
adolescência, seguindo o clima de contestação da época, comecei a ler muito –
Freud, Marx, Sartre, Camus, Clarice Lispector, Osman Lins, depois foram os americanos,
Hemingway, Fitzgerald, Mailer, mas sobretudo John Updike. Em 1970 entrei para o
Banco do Brasil e no ano seguinte vim para o Rio. Quanto a Monte Castelo (C.
Procópio, em dois contos do livro), realmente foi preciso distanciamento para
atenuar os conflitos sociais, as fantasias revanchistas com relação ao lugar e
apreciar o valor da minha história ali como o da beleza irremovível da sua
paisagem. Somos uma promessa feita a uma paisagem.
A que classe social
não prevista pelo marxismo clássico pertencem Boanerges, o Boina, e Tôni
Labanca, personagens que vivem em Monte Castelo?
JFS - De fato, Boanerges, no conto “Justiça
Eleitoral”, é mais um estróina que um simples proletário do setor de serviços
que tem seu dia de glória, isto é, de poder, quando preside a mesa nas
eleições. Seu conflito é mais com a comunidade como um todo, pela sua
deformidade, do que com a classe dominante. Já Tôni Labanca, no texto que leva
seu nome, é o típico arrivista, oportunista fascinado pelo glamour do cinema,
algo parecido com um lumpen pequeno-burguês que simula servir à burguesia para
se dar bem. Ou seja, o popular picareta travestido de puxa-saco. Esses tipos
são interessantes porque são criativos, hábeis e fazem a comunidade progredir,
civilizar-se. No conto, esse personagem lida com as várias formas de corrupção
que floresceram no país nas últimas décadas.
Onde começa a senzala
e termina a cibernética, na literatura e na vida real?
JFS - Em Cybersenzala, como o título indica, elas
se fundem. O telemarqueting, os call-centers, os 0800 são atividades
estafantes, em cubículos minúsculos, com horários rígidos e metas de produção a
cumprir. Ninguém trabalha nisso mais de seis meses em média. É uma senzala
cibernética. No mercado financeiro, o que pega é a tensão, a incerteza, a
complexidade do setor e ali a senzala é na verdade a mentalidade dos
operadores. Nossa literatura não fala dessa gente, mas eles estão aí, com seu
estilo de vida, suas roupas grifadas, sua ambição, seu hedonismo, seu cinismo,
sua falta de cultura. Eu quis sabe como eles viviam, o que comiam, bebiam, como
falavam e daí saíu o conto que dá título ao livro. Isso é a literatura. Na vida
real, estamos todos embarcados numa revolução tecnológica calcada na
informação, teremos na verdade um Modo de Produção Informático no futuro, isso
se a ecologia deixar, mas acho que o mundo das telas, e o que não está nas
telas não está na vida, serve mais é para mascarar uma crise civilizatória, uma
ausência total de valores com o fim dos deuses, da pátria, do dever, da
revolução.
No conto “Fado
Pauleira” há uma frase impressionante: “Todas as portas estavam fechadas, até a
do suicídio”. Lembrou-me um verso de Drummond: “Chega um tempo em que a vida é
uma ordem”. Você concorda com o poeta? No mundo de hoje a literatura é uma
forma de resistência e sobrevivência?
JFS - A frase do personagem Breno Bastos e a de
Drummond são convergentes, mas no conto trata-se do esgotamento das ilusões
pessoais. A aceitação da velhice implicará mudanças na auto-imagem do escritor,
que deverá viver e escrever com seu ego real sem pagar tributo ao seu ego
ideal, conversão sempre dolorosa. O que eu quis mostrar é como a geração 70
está envelhecendo, sua dificuldade em abandonar o forever young, em lidar com
as alterações na sexualidade, na vida literária, etc. Quanto ao suicidio, está
dito lá que “as pessoas se matam para deixarem de morrer”, mas não era o caso
de Breno Bastos. Ele havia cruzado uma linha em que o suicídio deixara de ser
saída honrosa, pois até a idéia de suicídio envelhece em nós. Ele sofria mesmo
era da manha de não querer “paz na desilusão” (expressão de Sérgio Sant’Anna).
Hoje mais do que nunca literatura é resistência, sobretudo agora que a cultura
letrada enfrenta não só a cultura visual, mas dentro das suas linhas luta também
contra o entretenimento impresso. O best-seller, a auto-ajuda, o pessoal
midiático que se põe a fazer romances e contos roubam espaço da literatura
séria, aquela que pretende escrever livros com tal força e questionamento que
as pessoas sejam modificadas pela sua leitura. Nenhum best-seller ou novela de
tv afeta a vida de ninguém, mas a leitura de Kafka pode mudar profundamente a
sua (mudou a minha).
Seus contos estão
repletos de referências irônicas – e sarcásticas – ao vocabulário pop. Comente
a influência da linguagem pop na literatura atual.
JFS - Vamos chamar o pop de cultura de massa ou
entretenimento cujas simplificações e estereótipos cometem dois pecados:
sugerir que arte é diversão (sem instrução) e que tudo é dizível. Ora, desde
Homero até Borges, arte é diversão e conhecimento, descoberta, ao mesmo tempo
que esforço para reconhecer o indizível. Sem isso, o pop só faz empobrecer a
problematização da realidade e a língua que empregamos, porque se apóia na
linguagem cotidiana. Nos anos 80 o Jornal Nacional era dado com 850 palavras
apenas. Por isso meu livro está na contramão do conto enxuto, rápido,
comercial, pronto para consumo. Escrevo histórias um pouco mais saturadas de
informação, com um vocabulário maior, sem ser hermético, para penetrar na
complexidade do mundo atual. E aí o humor entra como arma de guerra contra a
alienação, as ilusões do entretenimento em que o Bem, identificado com o
consumo e a ordem social, sempre vencem. As ironias são para expor nossa
existência sem fundamento.
O virtual já tomou
posse do real – até mesmo em relação à morte, como em
“www.joy&peacefuneraldesign.com”?
JFS - Há duas leis que o capitalismo ainda não
revogou: a proibição do incesto e o enterro dos mortos. O resto, vale tudo,
desde que pago. Mas os serviços funerários já começam a “destragicizar” a morte
(o que, para ser franco, não acho de todo mau). A morte vai sendo pouco a pouco
dessimbolizada, o luto hoje, por exemplo, é mínimo. O que procurei nesse conto
foi mostrar, através de um site, como a morte vem sendo desdramatizada pela
linguagem do entretenimento: fantasias, decoração, enxoval do morto, bandas de
rock, sorteios, comidas espetacularizam a cena fúnebre, tiram a transcendência
da morte usando uma linguagem melíflua, meio negócio meio publicidade. Isto
pode significar que aquilo que é tentativa no virtual, com o tempo se instala
no real. Veja a pedofilia como vem crescendo em função da Internet. Por aí, meu
livro viaja pelo contemporâneo explorando em cinco ou seis contos uma mídia em cada
um deles. O cinema em “Tôni Labanca”, a televisão em “Natália no Horizonte”, a
publicidade em “Recursos Humanos”. Isto ocorre porque nosso acesso à realidade
se dá quase que exclusivamente através dos meios. E não há saída para isso, a
menos que limitemos a sociedade de consumo, que depende deles – ameaça que o
problema ecológico vem tornando cada vez mais provável. Felizmente.
Há algo de bom na
nova literatura brasileira? E quais autores precisamos tirar da estante e
reler.
JFS - É difícil responder porque há muita gente
escrevendo no país, o número de editoras aumentou e o de títulos também (embora
as tiragens tenham caído), não dá para se manter atualizado. Eu acompanho
alguns autores – Sérgio Sant’Anna, Marçal Aquino, Domingos Pellegrini, Rubens Figueiredo,
Miguel Sanchez, Cíntia Moscovici – e costumo zapear os novos para me motivar, o
que tem sido raro. Nossa literatura parece tímida face à brutal complexidade do
país. É muito subjetivismo, pouca busca de novos espaços ficcionais. Não
conheço um romance importante sobre os operadores da bolsa de valores ou sobre
o raggae em São Luiz ou sobre o tráfico de brasileiras para a Europa. Tiro da
estante com relativa frequência O Homem sem Qualidades (Musil), A Náusea
(Sartre), os contos de Clarice Lispector, Memórias Póstumas de Braz Cubas
(Machado), A Ilha de Arturo (Elza Morante), o livro mais bonito que já li, e
Casais Trocados (John Updike), um texto brilhante.