sábado, 24 de junho de 2017

Jair Ferreira dos Santos

Tenho o prazer de reproduzir esta importante entrevista concedida pelo poeta e escritor Jair Ferreira dos Santos em 21 de fevereiro de 2007

Fale um pouco sobre sua vida em C. Procópio de 1946 a 1971. Foi preciso sair de Cornélio para escrever sobre Monte Castelo?

JFS - Venho de uma família simples, classe média baixa interiorana. Meu pai era padeiro e violonista. Durante anos teve uma orquestra. Minha mãe é uma camponesa católica fervorosa que me forneceu boa parte do meu caráter. Ascensão social ali significava: mandar os filhos para escola para que tivessem uma vida menos dura. Fui bom aluno no primeiro e segundo graus. Na adolescência, seguindo o clima de contestação da época, comecei a ler muito – Freud, Marx, Sartre, Camus, Clarice Lispector, Osman Lins, depois foram os americanos, Hemingway, Fitzgerald, Mailer, mas sobretudo John Updike. Em 1970 entrei para o Banco do Brasil e no ano seguinte vim para o Rio. Quanto a Monte Castelo (C. Procópio, em dois contos do livro), realmente foi preciso distanciamento para atenuar os conflitos sociais, as fantasias revanchistas com relação ao lugar e apreciar o valor da minha história ali como o da beleza irremovível da sua paisagem. Somos uma promessa feita a uma paisagem.

A que classe social não prevista pelo marxismo clássico pertencem Boanerges, o Boina, e Tôni Labanca, personagens que vivem em Monte Castelo?

JFS  -  De fato, Boanerges, no conto “Justiça Eleitoral”, é mais um estróina que um simples proletário do setor de serviços que tem seu dia de glória, isto é, de poder, quando preside a mesa nas eleições. Seu conflito é mais com a comunidade como um todo, pela sua deformidade, do que com a classe dominante. Já Tôni Labanca, no texto que leva seu nome, é o típico arrivista, oportunista fascinado pelo glamour do cinema, algo parecido com um lumpen pequeno-burguês que simula servir à burguesia para se dar bem. Ou seja, o popular picareta travestido de puxa-saco. Esses tipos são interessantes porque são criativos, hábeis e fazem a comunidade progredir, civilizar-se. No conto, esse personagem lida com as várias formas de corrupção que floresceram no país nas últimas décadas.

Onde começa a senzala e termina a cibernética, na literatura e na vida real?

JFS  -   Em Cybersenzala, como o título indica, elas se fundem. O telemarqueting, os call-centers, os 0800 são atividades estafantes, em cubículos minúsculos, com horários rígidos e metas de produção a cumprir. Ninguém trabalha nisso mais de seis meses em média. É uma senzala cibernética. No mercado financeiro, o que pega é a tensão, a incerteza, a complexidade do setor e ali a senzala é na verdade a mentalidade dos operadores. Nossa literatura não fala dessa gente, mas eles estão aí, com seu estilo de vida, suas roupas grifadas, sua ambição, seu hedonismo, seu cinismo, sua falta de cultura. Eu quis sabe como eles viviam, o que comiam, bebiam, como falavam e daí saíu o conto que dá título ao livro. Isso é a literatura. Na vida real, estamos todos embarcados numa revolução tecnológica calcada na informação, teremos na verdade um Modo de Produção Informático no futuro, isso se a ecologia deixar, mas acho que o mundo das telas, e o que não está nas telas não está na vida, serve mais é para mascarar uma crise civilizatória, uma ausência total de valores com o fim dos deuses, da pátria, do dever, da revolução.

No conto “Fado Pauleira” há uma frase impressionante: “Todas as portas estavam fechadas, até a do suicídio”. Lembrou-me um verso de Drummond: “Chega um tempo em que a vida é uma ordem”. Você concorda com o poeta? No mundo de hoje a literatura é uma forma de resistência e sobrevivência?

JFS  -   A frase do personagem Breno Bastos e a de Drummond são convergentes, mas no conto trata-se do esgotamento das ilusões pessoais. A aceitação da velhice implicará mudanças na auto-imagem do escritor, que deverá viver e escrever com seu ego real sem pagar tributo ao seu ego ideal, conversão sempre dolorosa. O que eu quis mostrar é como a geração 70 está envelhecendo, sua dificuldade em abandonar o forever young, em lidar com as alterações na sexualidade, na vida literária, etc. Quanto ao suicidio, está dito lá que “as pessoas se matam para deixarem de morrer”, mas não era o caso de Breno Bastos. Ele havia cruzado uma linha em que o suicídio deixara de ser saída honrosa, pois até a idéia de suicídio envelhece em nós. Ele sofria mesmo era da manha de não querer “paz na desilusão” (expressão de Sérgio Sant’Anna). Hoje mais do que nunca literatura é resistência, sobretudo agora que a cultura letrada enfrenta não só a cultura visual, mas dentro das suas linhas luta também contra o entretenimento impresso. O best-seller, a auto-ajuda, o pessoal midiático que se põe a fazer romances e contos roubam espaço da literatura séria, aquela que pretende escrever livros com tal força e questionamento que as pessoas sejam modificadas pela sua leitura. Nenhum best-seller ou novela de tv afeta a vida de ninguém, mas a leitura de Kafka pode mudar profundamente a sua (mudou a minha). 

Seus contos estão repletos de referências irônicas – e sarcásticas – ao vocabulário pop. Comente a influência da linguagem pop na literatura atual.

JFS  -   Vamos chamar o pop de cultura de massa ou entretenimento cujas simplificações e estereótipos cometem dois pecados: sugerir que arte é diversão (sem instrução) e que tudo é dizível. Ora, desde Homero até Borges, arte é diversão e conhecimento, descoberta, ao mesmo tempo que esforço para reconhecer o indizível. Sem isso, o pop só faz empobrecer a problematização da realidade e a língua que empregamos, porque se apóia na linguagem cotidiana. Nos anos 80 o Jornal Nacional era dado com 850 palavras apenas. Por isso meu livro está na contramão do conto enxuto, rápido, comercial, pronto para consumo. Escrevo histórias um pouco mais saturadas de informação, com um vocabulário maior, sem ser hermético, para penetrar na complexidade do mundo atual. E aí o humor entra como arma de guerra contra a alienação, as ilusões do entretenimento em que o Bem, identificado com o consumo e a ordem social, sempre vencem. As ironias são para expor nossa existência sem fundamento.

O virtual já tomou posse do real – até mesmo em relação à morte, como em “www.joy&peacefuneraldesign.com”?

JFS   -   Há duas leis que o capitalismo ainda não revogou: a proibição do incesto e o enterro dos mortos. O resto, vale tudo, desde que pago. Mas os serviços funerários já começam a “destragicizar” a morte (o que, para ser franco, não acho de todo mau). A morte vai sendo pouco a pouco dessimbolizada, o luto hoje, por exemplo, é mínimo. O que procurei nesse conto foi mostrar, através de um site, como a morte vem sendo desdramatizada pela linguagem do entretenimento: fantasias, decoração, enxoval do morto, bandas de rock, sorteios, comidas espetacularizam a cena fúnebre, tiram a transcendência da morte usando uma linguagem melíflua, meio negócio meio publicidade. Isto pode significar que aquilo que é tentativa no virtual, com o tempo se instala no real. Veja a pedofilia como vem crescendo em função da Internet. Por aí, meu livro viaja pelo contemporâneo explorando em cinco ou seis contos uma mídia em cada um deles. O cinema em “Tôni Labanca”, a televisão em “Natália no Horizonte”, a publicidade em “Recursos Humanos”. Isto ocorre porque nosso acesso à realidade se dá quase que exclusivamente através dos meios. E não há saída para isso, a menos que limitemos a sociedade de consumo, que depende deles – ameaça que o problema ecológico vem tornando cada vez mais provável. Felizmente.

Há algo de bom na nova literatura brasileira? E quais autores precisamos tirar da estante e reler.

JFS  -   É difícil responder porque há muita gente escrevendo no país, o número de editoras aumentou e o de títulos também (embora as tiragens tenham caído), não dá para se manter atualizado. Eu acompanho alguns autores – Sérgio Sant’Anna, Marçal Aquino, Domingos Pellegrini, Rubens Figueiredo, Miguel Sanchez, Cíntia Moscovici – e costumo zapear os novos para me motivar, o que tem sido raro. Nossa literatura parece tímida face à brutal complexidade do país. É muito subjetivismo, pouca busca de novos espaços ficcionais. Não conheço um romance importante sobre os operadores da bolsa de valores ou sobre o raggae em São Luiz ou sobre o tráfico de brasileiras para a Europa. Tiro da estante com relativa frequência O Homem sem Qualidades (Musil), A Náusea (Sartre), os contos de Clarice Lispector, Memórias Póstumas de Braz Cubas (Machado), A Ilha de Arturo (Elza Morante), o livro mais bonito que já li, e Casais Trocados (John Updike), um texto brilhante.